As cores, os sabores, os aromas, os sons, a paisagem, a luz e o ritmo da cidade imperial ocre formam um lugar de histórias pouco comuns. Marraquexe são os jardins, os palácios, uma praça excêntrica, uma muralha de portas abertas, e uma Medina onde convivem habitantes do deserto e turistas. Esta é a cidade que mistura as diferenças e as transforma em algo natural e único.
Com o olhar fixo na janela do autocarro vejo a paisagem verde transformar-se em terra vermelha. Entra mais uma mulher com uma djellaba escura que, por falta de lugares, se senta no chão enquanto negoceia o preço do bilhete. Mais um pouco e paramos no meio de um mercado onde tudo nos começa a cercar. Primeiro entram vendedores, depois um velho a cantar e, ainda outro homem que, num tom de lamento, parece querer contar a sua história. Os ocupantes manifestam-se. Uns com palavras e outros com dirhams. Em alguns segundos o mercado foi transportado para dentro do autocarro. Começo a entender um pouco do espírito de Marraquexe. Embora as palavras não se percebam, há sempre um sorriso ou um olhar que dá a entender a simpatia e hospitalidade deste povo.
Poucos quilómetros à frente, já vejo a cidade. O rosa define todos os edifícios. Lá ao fundo, a cordilheira do Alto Atlas, a maior cadeia montanhosa do Norte de África, com 4000 m de altura, está salpicada de branco e serve de pano de fundo a este lugar mágico onde habitam dois tempos. As muralhas separam os mundos: o antigo e o recente. De um lado o ritmo frenético de uma cidade medieval, do outro a modernidade.
O sol deste final de dia ajuda na tarefa de tirar umas boas fotografias aos Jardins Menara. Neste espaço tranquilo rodeado de oliveiras está um enorme reservatório de água e um pavilhão do século XII construído pela dinastia Saadi. Este lugar, que, noutros tempos, tinha apenas o uso privado dos sultões, é hoje um lugar público de lazer para as famílias marroquinas.
A cidade Velha
A partir dos portões dos Jardins Menara é possível ver uma extensa avenida ladeada por palmeiras e tangerineiras. Perto de um dos passeios um dromedário teima em arrancar folhas a uma oliveira. Esta avenida leva-nos até ao passado. É a cidade velha com os seus palácios e os mercados. A mesquita Koutoubia do século XII sobressai. Está ao fundo da rua com o minarete que serviu de modelo à Giralda de Sevilha e também à Torre Hassan da actual capital do país, Rabat. O chamamento para a oração do muezzin entoa pelos cantos da cidade e move os crentes. É uma pena mas a entrada só é permitida a muçulmanos.
Mesmo ao lado da mesquita começa o misticismo. O ambiente exótico impera na cidade fortificada. À entrada da Medina, a Praça Djemaa El-Fna recebe centenas e centenas de pessoas que se juntam em grupos por curiosidade. Nesta praça, de uma cidade com quase mil anos, parece que a televisão ainda não foi inventada e as pessoas são iluminadas com o dom da palavra. A tradição perpetua-se com os encantadores de serpentes, os dançarinos, os engolidores de espadas e os curandeiros a fascinarem quem por ali passa. De um lado a representação de uma peça. Por entre a confusão, vejo um adivinho a riscar o chão e a falar do futuro. Do outro lado mais um grupo e outro e outro…estamos no tempo dos contadores de histórias.
Outrora esta praça, também designada por “lugar dos mortos”, foi o palco das execuções de criminosos e as suas cabeças ficavam aqui expostas para que o medo impedisse novos crimes. Hoje este lugar é Património da Humanidade da UNESCO e a sua atmosfera, o bulício e a incessante vida representam uma incursão nas “Mil e uma noites”.
Mais à frente sou interpelada pelos vendedores de sumos de laranja. Depois chego às ruelas labirínticas, à azáfama dos souks (mercados) que aglomeram artigos de couro, carpetes marroquinas tecidas por tribos berberes (habitantes do deserto), roupas, louças, entre inúmeros objectos. Passo pelas lojas onde é fundamental regatear antes de comprar qualquer uma das inúmeras peças de arte tradicional expostas. Basta começar com uma pergunta: “Combien ça coûte?”, e somos levados para uma negociação amistosa.
O aroma e a intensidade das cores dos longos cones de especiarias e a diversidade das ervas prendem-me por um instante. E é possível saciar o apetite com a comida tradicional: a tagine, os couscous, os kebabs, os fritos, entre outros, enquanto se bebe mais um chá de menta cheio de açúcar e se tenta perceber o que move toda esta gente.
Á noite, o caminho para o hotel faz-se num “petit taxi”, um meio de transporte barato que é muito utilizado ainda que assuste quem não esteja habituado ao trânsito caótico de Marrocos.
São necessários vários dias para conhecer esta cidade. E a Praça Djemaa el-Fna atraí-nos sempre para o seu coração. Daqui tudo parte. É aqui que tudo chega. De dia os jogos de luz e sombra obedecem aos juncos que cobrem os mercados. Enveredo por ruelas, espreito pelas esquinas, sigo pelo emaranhado de olhares absortos no seu dia-a-dia simples. Os artesãos distribuem-se como se dividem os mercados, de acordo com a sua especialidade.
Vários minutos depois encontro o que procuro. De um lado da rua a tapeçaria pendurada no muro remete para os contos infantis com tapetes voadores. Do outro está o Palácio Bahia, uma antiga residência do grão-vizir Ba Ahmed do século XIX. Neste palácio oriental com tectos floridos, mosaicos majestosos e estuques, as janelas abrem-se para pátios e fontes e o verde predomina nos jardins interiores (riades). Em tempos idos o grão-vizir habitou aqui com as suas esposas e concubinas.
Ainda na Medina, há para ver o mausoléu dos sultões da dinastia Saadi. Depois sigo em direcção ao Palácio El Badi (do século XVI), onde as cegonhas utilizam as torres para fazer os seus ninhos. Hoje as ruínas são o que resta de um palácio decorado com ouro e mármores de Itália, trocados na altura por açúcar. As indemnizações que os portugueses pagaram depois da batalha de Alcácer-Quibir terão também servido para a sua edificação.
Cidade Nova
Outrora Marraquexe recebia as caravanas de mercadores de sal, ouro e escravos que cruzavam o deserto do Saara. Hoje a cidade ainda mescla as culturas. Constituída, maioritariamente, por berberes mas também por árabes e africanos combina o espírito de África com a cultura do Oriente. Também alguns europeus habitam nesta cidade. Os franceses construíram o bairro mais cosmopolita da cidade: Guéliz. A estação de comboios é o primeiro exemplo, para os turistas que chegam, de que é possível juntar a estética oriental com as escadas rolantes e os restaurantes de fast food ocidentais. É neste lado da cidade que estão os Jardins Majorelle, mandados construir por Yves Saint-Laurent e onde foram depositadas as suas cinzas. Trata-se de uma casa azul rodeada por um oásis com flores, coqueiros, bananeiras, cactos e o chilro de pássaros.
Mas a modernização deste país não tem tido apenas influências externas. Quando o actual rei de Marrocos, Mohamed VI, subiu ao trono, há dez anos, prometeu combater a pobreza, criar novos empregos e fazer cumprir os direitos humanos. Mohamed VI reformulou a Mudawana (código da família), dando à mulher a mesma liberdade do homem. Esta mudança deu lugar a uma mulher cosmopolita e é comum encontrar mulheres marroquinas que se aparentem com mulheres ocidentais e, vice-versa. O rei é adepto do turismo e Marraquexe não escapa com os seus magníficos hotéis, complexos turísticos e avenidas largas. A cultura não é deixada de parte. O Festival anual de Cinema de Marraquexe é já comparado ao Festival de Cannes europeu.
Esta cidade não é só um lugar. Marraquexe são milhentas histórias, narrativas, contos e tertúlias envoltos num ambiente deslumbrante e num turbilhão de magia que nos puxa pelos sentidos. Onde há lugar para tudo e para todos. Aqui tudo se funde.
Cátia Calado
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