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Paulo Speller defende a Universidade como um direito universal

A Universidade como um Direito Universal

Paulo Speller foi entre 2015 e 2018 o Secretário-Geral da Organização dos Estados Ibero-americanos para a Ciência, Educação e Cultura (OEI) defende que a Universidade como um direito universal…” que deve ser preservado em todas as suas manifestações, respeitada a autonomia universitária, conquista inalienável construída em cada região e em cada instituição, respeitadas suas peculiaridades”.

Na entrevista concedida por Paulo Speller à Raia Diplomática, ainda falamos sobre o sistema de educação do Brasil e os novos desafios que a digitalização trouxe ao ensino, a importância da OEI no espaço ibero-americano e a sua projecção internacional.

Entre 2015 e 2018 foi o Secretário-Geral da Organização dos Estados Ibero-americanos para a Ciência, Educação e Cultura. Que balanço faz do seu trabalho?

A OEI ja completou setenta anos e é hoje uma das organizações mais conceituadas e estruturadas na América Latina, no Caribe e na Península Ibérica, com repercussão em outras regiões do planeta,  como África, Ásia e mesmo na Europa, consolidando-se como uma organização global, mas mantendo sua forte identidade iberoamericana. Os escritórios da OEI em quase todos os países da região mantêm equipes de trabalho profissionais e fortemente conectadas com a sociedade civil e os governos locais. Durante minha gestão abrimos o novo escritório em Lisboa, o que fortaleceu o caráter bilíngue da OEI, ampliando significativamente a presença da língua portuguesa, para além de Portugal e Brasil, nos seis países de língua oficial portuguesa em África.

Mas a sua ideia de integrar os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) na OEI não foi para a frente?

Os PALOP são países observadores na OEI, o que implica em um processo de construção dessa comunidade de países iberófonos, fortalecendo assim a mútua intercompreensão entre o português e o espanhol. A pandemia certamente está a exigir de todos mais paciência.

Aliás, a integração em qualquer organização nunca é fácil. Porquê?

O próprio conceito de integração é complexo. Quem se integra a quem? Quem integra uns aos outros? Quem promove a integração? Não é fácil a promoção deste processo se partimos da noção de igualdade entre todos e cada um dos países, sobretudo quando sabemos de antemão que as condições em que se encontra cada país  são desiguais. Os já 72 anos da OEI com certeza ajudam no amadurecimento ao encarar a integração entre países como um itinerário cheio de idas e vindas, mas a OEI há de chegar a bom porto. Propusemos à época reproduzir programas de sucesso com avaliação internacional positiva, como o “Luzes para Aprender”[1], que aliás revelou-se mais do que pertinente para os tempos atuais ao propor levar a conectividade ao conjunto das escolas de base dos países da OEI. Este pode ser um bom caminho, ainda que não o único.

Segundo os dados de 2018, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), refere que dois terços dos brasileiros de 15 anos sabem menos que o básico de matemática, e em leitura apresentam uma estagnação nos últimos dez anos. De quem é a culpa? Dos alunos, dos professores ou das políticas educativas?

O Brasil é um país fortemente enraizado na escravidão, que ainda está muito presente em todas as estruturas, econômicas, sociais, culturais. Laurentino Gomes publicou recentemente “Escravidão”,[2] um livro obrigatório para quem quer nos conhecer. Inevitavelmente, a educação sofreu forte impacto desta visão de mundo e dos valores dele decorrentes. Por isso é muito recente a construção de políticas que contemplam a noção de universalização da educação, a escolas para todas as pessoas, em todos os níveis, com pertinência às demandas de cada localidade, região ou mesmo do país. O que é ainda mais grave é que mesmo as escolas que recebem as crianças das elites brasileiras não asseguram essa qualidade representada pela pertinência mais abrangente. O Brasil ainda é um país isolado do mundo, apesar de seu gigantismo territorial, monolíngue, onde nossas crianças e jovens não se localizam no mundo da história e da contemporaneidade. Entretanto, contamos com muitas experiências isoladas de escolas tanto públicas como privadas espalhadas por todos os rincões desse gigante que é o Brasil, com muita ousadia e resultados excepcionais, inclusive para o que demanda o PISA, mas não  só. O que precisamos fazer é reunir essas boas práticas e com elas construir políticas públicas para as novas gerações e mesmo abrir oportunidades para pessoas adultas que desejam estudar.

As tecnologias sempre estiveram presentes na educação desde tempos imemoriais. Assim foi com os papiros na antiguidade e depois com a introdução da impressão por tipos móveis de Gutenberg no século XV. Os papiros e depois os livros foram considerados instrumentos diabólicos em seu tempo. Guardadas as devidas proporções, não é muito diferente com as chamadas Tecnologias da Informação e da Comunicação, as TIC, inclusive com o processo de digitalização que a pandemia está a acelerar. Na verdade, os impactos deixados por experiências mais recentes propiciadas pelo fechamento das escolas desde março de 2020, mostram que se trata de abrir espaços para redes colaborativas entre instituições, plataformas, programas, iniciativas, startups e tantas outras possibilidades que as novas gerações abraçam com entusiasmo. É evidente que as desigualdades sociais agravadas durante a pandemia, no contexto da desaceleração econômica e forte desemprego até mesmo com empobrecimento das maiorias, impede ou pelo menos dificulta o acesso tanto à conectividade de banda larga como na entrada a programas pertinentes com apoio docente e especializado. Precisamos aderir a uma campanha em prol da universalização do acesso a essas novas oportunidades, e quanto antes melhor.

O mundo da internet dá-nos uma grande variedade de informação. Antes o professor parecia que tinha o monopólio da informação dentro da sala de aula. Está o professor do século XXI preparado para ser um verdadeiro orientador de alunos, e menos um mestre que debita sem questionamento a matéria a lecionar?

A formação docente adquire um significado ainda maior com os avanços tecnológicos, apesar de que o seu papel de educador e educadora permanece e supera o de tecnólogo. Mas não resta a menor dúvida que a dinâmica da educação mais do que nunca se dá em ambientes os mais diversos, dentro e fora da escola, onde a sala de aula se transforma num espaço que se altera e transforma a cada momento, com esse papel docente de coordenar, supervisionar, acompanhar o processo educativo muito além da transmissão do conhecimento, mas, repito, processo este fortemente ancorado nos valores maiores da educação para promover a pessoa humana dentro de seu potencial, como processo social que promove um direito humano fundamental que é o acesso a uma escola de boa qualidade acadêmica, pertinente e relevante para a sociedade e para toda a sociedade.

As universidades públicas brasileiras apenas têm 25% dos alunos inscritos. Em sua opinião deveria haver um maior investimento na educação pública?

As universidades públicas no Brasil, historicamente, formaram as elites do país, e apenas recentemente, nas duas últimas décadas, passaram por um processo de expansão com a sua interiorização e criação de novas instituições em todas suas regiões. Ao mesmo tempo, houve o aperfeiçoamento das normas e práticas de regulação do ensino superior que abrange também faculdades, centros universitários e universidades privadas, comunitárias, confessionais, para além das federais, estaduais e municipais. O ensino superior no estado de São Paulo encontrou um caminho equilibrado para o financiamento de suas instituições, como a USP, Unicamp e UNESP, além da Univesp, com a destinação de um percentual de cerca de 10% da arrecadação do estado de São Paulo do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços, o ICMS. Falta no âmbito federal um mecanismo semelhante que dê concretude à Constituição Federal, que assegura autonomia às universidades federais no seu artigo 207, para além de atribuir à Comunidade Universitária a escolha de seus dirigentes. É nas universidades públicas onde se concentra a produção do conhecimento fundamental, aplicado, tecnológico, como bem vimos durante a pandemia da COVID-19, com o desenvolvimento de vacinas e procedimentos sanitários apropriados. A universidade é estratégica para o desenvolvimento sustentado e sustentável do país e é com ela que o Estado deve buscar caminhos que beneficiem toda a sociedade, formando cientistas, docentes e profissionais, produzindo conhecimentos novos e desenvolvendo novas formas de relacionamento com a sociedade através da extensão universitária.

Paulo Speller

Que medidas podem ser tomadas para melhorar o sistema de educação do Brasil?

Três segredos para alavancar o sistema de educacao do Brasil. Primeiro: priorizar as boas práticas de escolas, municípios, regiões, que existem mas são mantidas invisíveis e poucos conhecem, torná-las conhecidas e valorizadas. Dois: mobilizar as equipes escolares e de gestão envolvidas nessas experiências e dar protagonismo, com entusiasmo, estimulando lideranças, técnicos, docentes, estudantes, familiares, comunidades, inclusive com estímulos materiais para reforçar as iniciativas. Terceiro: promover a construção de políticas a partir dessas boas práticas, trazendo para a linha de frente as unidades escolares, as equipes, as cidades pequenas, médias e maiores. A história da educação brasileira tem registros de iniciativas pertinentes como estas em governos recentes e vale a pena recuperar os esforços de antes. A liderança do governo federal e estaduais a partir das novas administrações em 2023 pode ser um bom começo, apesar de que as experiências mais localizadas em escolas e municípios se constroem mais rapidamente e com maior participação.

E a cooperação internacional no âmbito educativo, cultural e científico deve ser tomada com mais atenção, nomeadamente na mobilidade de alunos, professores e cientistas, seja no espaço ibero-americano ou no espaço da lusofonia?

Mais uma vez, governos e organizações como a OEI contam com iniciativas e programas que favorecem a mobilidade internacional. O Programa Paulo Freire, que criamos em nossa gestão e foi ampliado recentemente à pós-graduação é um belo exemplo.[3] A mobilidade local, regional nacional ainda é muito restrita e deveria ser estimulada, ao mesmo tempo em que se formula uma estratégia para retomar a cooperação internacional, agora valendo-se das novas tecnologias, cada vez mais interativas. Por exemplo, as universidades federais estão a desenvolver um programa de mobilidade entre instituições em diferentes regiões que permitem que estudantes de um estado se beneficiem de disciplinas e atividades oferecidas em outra universidade, trata-se do Programa Promover.[4] As tecnologias estão a avançar inclusive na simulação de laboratórios, práticas profissionais, visitas institucionais, para além da sala de aula, que cada vez está menos presente nas atividades discentes. A formação docente passa a ser uma prioridade ainda maior, mas a melhor maneira de encará-lo é enfrentado projetos mais ousados com o apoio daqueles mais experientes dentro da mesma instituição e depois entre instituições. São muitas as iniciativas de projetos de redes de colaboração atualmente em desenvolvimento em diferentes situações.

A leitura e a interpretação de textos ou até mesmo na forma oral são cruciais para o nosso desenvolvimento enquanto cidadãos dignos desse nome. O mundo nos últimos anos viu e sentiu o nascimento e desenvolvimento de movimentos populistas. Para boa parte desses movimentos e dos seus líderes que conseguem passar sua mensagem baseada em crenças pessoais, e não em comprovações científicas, basta olhar para os negacionistas da pandemia da covid-19. Os cidadãos, seja a nível individual ou a nível da nossa comunidade, o que podem para fazer para mitigar essas ameaças à estabilidade social?

A leitura no seu nível mais básico com crianças em idade pré-escolar é sempre mais efetiva quando envolve a compreensão do que se lê; este foi o tema de minha dissertação de mestrado na UNAM ao início da minha carreira acadêmica. Hoje pode-se dizer que o senso comum nos aponta nesta direção, isto é, a melhor maneira de fazer frente às fake news é com educação e mais educação. Mas não basta! Precisamos construir políticas que resultem em oportunidades de acesso à cultura, a nossa história e sobretudo oportunidades de participação na vida social, cultural e econômica dos nossos países. As ditaduras começam sempre em cima dos vazios de oportunidades apresentando saídas fáceis e ilusórias. Pode parecer fácil dizê-lo, ainda mais durante a pandemia que tanto nos afetou planetariamente, mas é preciso sempre insistir nessa direção.

Actualmente é o representante no Brasil de OBREAL – Observatório Global que está sediado em Barcelona. Quais são os seus objectivos da OBREAL no Brasil, e que projectos está actualmente a desenvolver?

O Observatório Global OBREAL[5] vem desenvolvendo alguns projetos em diferentes regiões do mundo em que se busca sempre a colaboração mútua entre universidades e outras instituições de ensino superior que resultem na abertura de possibilidades para o entendimento entre diferentes culturas. O Brasil sempre lutou contra o seu isolamento na América Latina, separado da América do Sul pela barreira dos Andes, agravado por diferenças linguísticas entre o português e o espanhol, dois idiomas iberófonos que permitem a sua intercompreensão, mas que também podem levar à sua miscegenação intercultural resultando no portunhol, nem uma coisa nem outra, ou até mesmo um novo idioma como querem alguns. Nesse sentido, venho trabalhando por trazer universidades brasileiras a se interessarem a trabalhar mais estreitamente com outras universidades na América Latina e mesmo em outras regiões. Atualmente estamos construindo um interessante projeto do que denominamos “Capítulo Sul Americano”[6], buscando a internacionalização do currículo entre universidades brasileiras, argentinas, colombianas, chilenas e outras mais no Uruguai, Peru e outros países da região, utilizando tecnologias de digitalização interativa do ensino superior, inclusive valendo-se de experiências exitosas de mobilidade presencial, como, por exemplo, e entre outros, o Collaborative Online International Learning, o COIL[7], do qual participam universidades de nossos países e outras regiões do mundo, hoje utilizando tecnologias que permitem a mobilidade remota, ou mesmo híbrida, combinando ambas situações.

E para o futuro próximo, que outros projectos pensa em desenvolver?

A Conferencia Mundial de Educação Superior a realizar-se em 2022 na cidade de Barcelona tem a maior pertinência para todo o planeta. O papel estratégico da universidade e da educação superior para o desenvolvimento sustentado e sustentável em todas as regiões foi reconhecido em 1998 e 2009 depois das primeiras Conferencias Regionais, o que foi reafirmado em 2018 quando se celebrou o Centenário da Reforma Universitária da Universidade de Córdoba, na Argentina. Nessa mesma ocasião, a Universidade de Córdoba sediou a III Conferência Regional da América Latina e Caribe e a reunião do Espaço Latino-americano e Caribenho da Educação Superior[8], mais conhecido como ENLACES, que congrega as organizações e instituições regionais e nacionais da região, com prioridade para a integração regional e sua internacionalização.

A educação superior é um bem público e social, um direito humano universal que deve ser preservado em todas as suas manifestações, respeitada a autonomia universitária, conquista inalienável construída em cada região e em cada instituição, respeitadas suas peculiaridades. Nesse sentido, faz-se igualmente necessário preservar os espaços e avanços da educação superior no âmbito ibero-americano, ao considerar-se os laços institucionais e culturais que unem a região latino-americana e caribenha com universidades e organizações e outras instituições da Península Ibérica, assim como com a Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa, a CPLP.

Este é o projeto ao qual me dedico no momento: reafirmar o papel estratégico da Universidade e da educação superior na construção de uma sociedade mais justa, equânime e solidária, que deve ser levado à CMES da Unesco em 2022. Ao participar ativamente do Observatório Global OBREAL, do Grupo Kairós[9], do Centro de Estudos Latino-americanos da Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG, como pesquisador associado, como professor emérito da Universidade Federal de Mato Grosso, a UFMT, e outros como o Fórum da Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa, o FORGES, e o nascente Foro Ibérico, além de inúmeras universidades no Brasil, América Latina e Caribe e outras regiões. Depreende-se deste projeto uma lição que nos deixa a pandemia da COVID-19: a pertinência da construção de Redes Colaborativas entre universidades e países como caminho para a integração e a internacionalização. Este é o caminho apontado pelo Instituto Internacional da Educação Superior da América Latina e Caribe, o IESALC da Unesco, onde Francesc Pedró lidera um amplo esforço com ampla participação de organizações, instituições e lideranças acadêmicas, docentes, discentes, cientistas de toda a região. A educação superior será outra, já o é, no processo de superação pandêmica, esta é a realidade com a qual convivemos, esta é a prioridade à qual me dedico, contribuindo para levar a bandeira das Redes Colaborativas à próxima Conferência Mundial da Educação Superior da Unesco em Barcelona em 2022.


[1] https://www.oei.es/uploads/files/microsites/22/78/guia-secondary-web.pdf, visto em 30/07/2021.

[2] https://youtu.be/bzPW1NXr14g, visto em 30/07/2021.

[3] https://paulofreire.oei.es, visto em 30/07/2021.

[4] https://www.andifes.org.br/?p=87470, visto em 30/07/2021.

[5] https://obsglob.org, visto em 29/07/2021.

[6] https://obsglob.org/chapter-south-america-webinars, visto em 30/07/2021.

[7] http://www.coilconsult.com/what-is-coil-.html, visto em 29/07/2021.

[8] http://espacioenlaces.org, visto em 30/07/2021.

[9] https://kairos-educacion.com, visto em 30/07/2021.

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