Em setembro de 2022, celebramos o Bicentenário da Independência do Brasil, os duzentos anos de construção da identidade do Brasil como país livre e independente. A forma como Portugal decidiu engajar-se nessas comemorações – tomando a iniciativa de instituir uma comissão nacional, integrar-se às celebrações brasileiras e promover dezenas de eventos, entre seminários acadêmicos, apresentações artísticas e iniciativas políticas e empresariais alusivas à data – chamou a atenção para a natureza particularmente especial dos laços que unem nossos dois países. Afinal, não é comum que a ex-metrópole participe dos festejos da independência de uma de suas ex-colônias. Quando se diz que, com o advento da Independência, substituímos uma relação de dependência política por uma relação de amizade e fraternidade em todos os domínios, não são palavras vazias: essa fraternidade é traduzida por gestos como a celebração conjunta do Bicentenário.
Para estudar com afinco como as relações Brasil-Portugal foram tecidas, qual é seu estado atual e para onde aponta o futuro, defendo que desde já se crie uma comissão conjunta para elaborar um programa a fim de comemorar o Bicentenário das Relações Brasil-Portugal. As relações formais entre Brasil e Portugal como Estados independentes começaram em agosto de 1825, com a assinatura do Tratado de Paz, Amizade e Aliança. Assim, teremos oportunidade, ao longo dos próximos vinte meses, de lançar luz sobre todos os aspectos das nossas relações: da identidade de valores e princípios, aos objetivos e projetos que temos em comum, passando pelos nossos riquíssimos intercâmbios culturais – língua, música, literatura e os mais diversos tipos de expressão artística – e pelas conexões humanas, políticas, sociais, tecnológicas e empresariais que tornam essa relação única, alimentam sua vitalidade e apontam para um futuro ainda mais promissor.
Breve histórico
Desde a Independência, houve momentos de maior ou menor proximidade entre nossos governos, mas as relações entre nossos países sempre foram especiais, alimentadas precisamente pela irmandade dos nossos povos.
Na década de 1970, as relações bilaterais ganharam renovado impulso quando começaram os processos que culminaram com o 25 de Abril em Portugal – cujos 50 anos celebraremos juntos em breve – e o início da política de distensão no Brasil, que veio se consolidar com a redemocratização a em 1985.
Um marco desse período foi a visita de Estado do Presidente Mário Soares ao Brasil, em abril de 1987. O líder português daria prova do caráter singular da relação entre nossos países com seu gesto, em 1994, de proceder à reabilitação histórica de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, condenado à morte pela participação da Inconfidência Mineira, em 1789. Com essa reabilitação, Portugal assumiu o mártir brasileiro como um herói também português, que lutou pelos ideais de liberdade.
Na segunda metade dos anos 1990, foi a vez do Primeiro-Ministro António Guterres realizar uma importante visita ao Brasil – acompanhado de uma robusta comitiva de autoridades e empresários portugueses. Naquele período, Portugal chegou a ser o terceiro maior investidor estrangeiro no Brasil.
Nas comemorações dos 500 anos do Descobrimento, em 2000, celebramos o emblemático Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta. Também conhecido como Tratado de Porto Seguro, esse instrumento fornece a estrutura jurídica que até hoje orienta a relação bilateral, promovendo o constante aprimoramento do diálogo e da cooperação bilateral, em torno das reuniões da Comissão Permanente Bilateral e das Cimeiras luso-brasileiras.
Em preparação para a celebração dos 200 anos das relações diplomáticas entre Brasil e Portugal, constato o excelente estado da nossa “amizade perene”. Nossos países coincidem no propósito de continuar a nutrir e aprimorar a relação bilateral. Compartilhamos desafios e oportunidades, valores e visões de mundo. Trabalhando juntos, podemos enfrentar com mais força os desafios contemporâneos e construir um futuro de cooperação, prosperidade e paz
Embaixador Raimundo Carreiro Silva, Embaixador do Brasil em Portugal
Balanço atualizado
As relações bilaterais desenvolveram-se positivamente ao longo dos anos. Do ponto de vista institucional, contamos com a sólida e abrangente estrutura legal do Tratado de Porto Seguro. Esse arcabouço dá espaço para que nossas sociedades sejam as efetivas protagonistas da relação bilateral, imprimindo forte dinamismo. Nos últimos dez anos o comércio bilateral dobrou e, em 2022, alcançou o maior valor de sempre: 5,26 bilhões de dólares. O Brasil é o segundo principal fornecedor de bens para Portugal fora da UE. E Portugal tornou-se o 18º destino das exportações brasileiras. Os fluxos de investimento aumentaram significativamente em ambas as direções. O Brasil concentra mais de 20% dos investimentos de Portugal no mundo, com capital acumulado de cerca de 12 bilhões de dólares. E Portugal atrai cada vez mais capital brasileiro, já superando os valores investidos nas três maiores economias da UE (Alemanha, França e Itália). Os setores que mais atraem investimento estrangeiro em Portugal são o digital (incluindo as fintech e as agtech), o agroalimentar, de transportes e de energia renovável. Como o Brasil tem forte competitividade global nesses setores, as perspectivas de crescimento são elevadas. Em sentido inverso, há interesse do Brasil em atrair maior investimento português particularmente nas áreas de infraestrutura, energia renovável e turismo. Por fim, a comunidade brasileira em Portugal mais que triplicou, alcançando 342 mil residentes oficiais em 2023. Essa comunidade impacta de forma decisiva as relações bilaterais. Estudantes, pesquisadores, investidores, artistas e trabalhadores nos mais diversos setores contribuem diretamente para fomentar a cultura e a economia.

Diante desse ambiente de renovado interesse recíproco entre nossas duas sociedades, os governos de Brasil e Portugal tomaram a decisão de revisitar o quadro das relações bilaterais e fomentar o nosso diálogo político e econômico. Recém-eleito para seu terceiro mandato presidencial, Luiz Inácio Lula da Silva veio a Portugal, onde encontrou-se com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o Primeiro-Ministro António Costa. Poucas semanas depois, o Presidente Rebelo de Sousa e o Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, foram a Brasília para a posse do Presidente Lula da Silva, que foi então convidado a realizar uma visita de Estado a Portugal. O convite foi prontamente aceito e deu origem a um intenso trabalho de negociação de acordos.
Lula da Silva escolheu Portugal como destino de sua primeira visita à Europa. A viagem de cinco dias e culminou com histórico discurso na Assembleia da República no dia 25 de Abril, que destacou a importância política de Portugal para o Brasil. Ao evocar as conexões entre a Revolução dos Cravos e a redemocratização brasileira, o mandatário brasileiro reforçou a solidariedade bilateral e o compromisso do Brasil e de Portugal com o Estado Democrático de Direito.
Encerrando hiato de uma década desde a última visita oficial de um Presidente do Brasil a Portugal, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu atribuir a este país um nível de prioridade talvez inédito nos 198 anos de relacionamento bilateral: a declaração conjunta da XIII Cimeira Luso-Brasileira, com 99 parágrafos, abrange entendimentos todos os aspectos das relações bilaterais, incluindo a concertação em temas regionais e globais. Além disso, 16 acordos foram celebrados durante a Cimeira, um número recorde. Esses instrumentos abordam temas de interesse prioritário e impacto imediato para nossos cidadãos, como educação, saúde, segurança e reconhecimento de carteiras de condução, sem descuidar de assuntos de maturação mais longa, como defesa, energia, direitos humanos, tecnologia aeroespacial e coprodução cinematográfica.
Tendo em vista a importância crucial da educação para o desenvolvimento de nossos dois países e para o dia a dia dos nossos cidadãos, destaco particularmente o acordo sobre equivalência de notas do ensino médio, uma demanda antiga das famílias. Ressalto igualmente que, na esteira da pandemia de COVID-19, foram assinados dois instrumentos na área de saúde, ambos voltados para a fortalecer a resiliência de nossos sistemas de saúde e incrementar as capacidades locais de produção de medicamentos e vacinas. A Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), reconhecida internacionalmente por sua excelência, deve incrementar sua presença em Portugal.
Outro resultado marcante da visita foram as ações e instrumentos de cooperação no setor aeronáutico. A entrega do primeiro dos cinco aviões cargueiros KC-390 encomendados à Embraer pela Força Aérea Portuguesa deu visibilidade a esse magnífico projeto tecnológico e industrial, executado em parceria com Portugal. Com base no sucesso dessa parceria, a Embraer celebrou novo acordo com empresas portuguesas para promover atualização tecnológica do Super-Tucano para os padrões da OTAN. Essa atualização deve abrir novas perspectivas de venda dessa aeronave, com ganhos para ambos os países em termos de geração de empregos e divisas.
Por fim, registro o êxito do Fórum Empresarial Portugal-Brasil, realizado em 24 de abril no CEIIA, na cidade do Porto, um dos centros de referência portugueses em pesquisa e investigação. O enfoque escolhido pelas autoridades portuguesas coaduna-se perfeitamente com a decisão brasileira de promover processo de “neoindustrialização”, que estimula segmentos industriais inovadores e sustentáveis.

Futuro das relações Luso-Brasileiras
Não há dúvida que as iniciativas de cooperação lançadas por ocasião da visita do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva trarão resultados significativos nos próximos anos. Há muito para fazermos juntos para enfrentar desafios comuns:
– A transição verde e digital, necessária para enfrentar o desafio das alterações climáticas, recomenda investimentos certeiros para promover o desenvolvimento de tecnologias eficientes e fontes renováveis de energia, incluindo o hidrogênio verde, aproveitando as vantagens competitivas de Brasil e Portugal.
– Impõe-se a adoção de medidas corajosas para erradicar a pobreza e a fome e promover a inclusão econômica e social, combinando cooperação para aumentar a produtividade agroalimentar em nossos países com políticas sociais eficazes.
– A pandemia de COVID-19, de cujas consequências ainda não nos recuperamos plenamente, ressaltou a necessidade de investirmos na qualidade dos nossos sistemas públicos de saúde e assegurar o acesso a medicamentos e vacinas.
– Por fim, os atuais desafios na ordem internacional recomendam o engajamento e a coordenação de esforços de atores como Brasil e Portugal, com sua tradicional atitude construtiva e responsável e seu compromisso com o multilateralismo.
Temos um sólido histórico de apoio mútuo nas organizações em que ambos participamos, tais como as Nações Unidas e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) – espaço privilegiado de concertação política, cooperação, reforço dos laços econômicos e promoção da língua portuguesa. Ao mesmo tempo, nossa relação de confiança e proximidade permite construir pontes para com organizações em que somente um dos dois participa, tais como OTAN, OCDE e UE, no caso de Portugal, e G20, BRICS e Mercosul, no caso do Brasil.
Nesse contexto, estamos empenhados, Brasil e Portugal, em apoiar a conclusão, ainda este ano, do acordo Mercosul-União Europeia. Estamos certos de que o acordo terá impacto econômico muito positivo, aumentando a competitividade de nossas economias e contribuindo para a promoção do desenvolvimento sustentável. Além disso, em cenário de céleres alterações nos equilíbrios internacionais, o acordo reveste-se de enorme importância geoestratégica, apoiando a preservação e o fortalecimento dos laços econômicos, políticos e sociais entre nossas respectivas regiões.
Em preparação para a celebração dos 200 anos das relações diplomáticas entre Brasil e Portugal, constato o excelente estado da nossa “amizade perene”. Nossos países coincidem no propósito de continuar a nutrir e aprimorar a relação bilateral. Compartilhamos desafios e oportunidades, valores e visões de mundo. Trabalhando juntos, podemos enfrentar com mais força os desafios contemporâneos e construir um futuro de cooperação, prosperidade e paz.

Embaixador Raimundo Carreiro Silva, Embaixador do Brasil em Portugal
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